Processo Grupal: Uma Perspectiva Histórica e Dialética
Ao realizar uma revisão de diferentes teorias sobre grupo, Lane (1984b) encontrou em seus estudos duas grandes posições. A posição tradicional defendia que a função do grupo seria apenas a de definir papéis e, por conseqüência, implicaria garantir a produtividade dos indivíduos e grupos através da manutenção e harmonia das relações sociais. Outra posição, por sua vez, enfatiza o caráter de mediação do grupo, afetando a relação entre os indivíduos e a sociedade. Nesta posição prevalece a preocupação com o processo pelo qual o grupo se produz, considerando as determinações sociais presentes nas relações grupais. A partir dessa constatação e se apropriando dos avanços que algumas teorias traziam para a compreensão da experiência grupal enquanto processo, Lane propõe algumas premissas para se conhecer o grupo:
1) o significado da existência e da ação grupal só pode ser encontrado dentro de uma perspectiva histórica [ itálicos nossos] que considere a sua inserção na sociedade, com suas determinações econômicas, institucionais e ideológicas [ itálicos nossos] ; 2) o próprio grupo só poderá ser conhecido enquanto um processo histórico [ itálicos nossos] , e neste sentido talvez fosse mais correto falarmos em processo grupal [ itálicos nossos] , em vez de grupo. (Lane, 1984b, p. 81).
Ao falar em processo grupal e não em grupo ou dinâmica de grupo Lane (1981b, 1984b) se posiciona, trazendo para o centro da discussão o caráter histórico e dialético do grupo. Não se trata apenas de diferença na denominação, mas uma diferença profunda no fenômeno estudado. A partir dessa perspectiva, estamos afirmando o fato de o próprio grupo ser uma experiência histórica, que se constrói num determinado espaço e tempo, fruto das relações que vão ocorrendo no cotidiano e, ao mesmo tempo, que traz para a experiência presente vários aspectos gerais da sociedade, expressas nas contradições que emergem no grupo, articulando aspectos pessoais, características grupais, vivência subjetiva e realidade objetiva. Ressaltar o caráter histórico do grupo implica compreender que o grupo, na sua singularidade, expressa múltiplas determinações e as contradições presentes na sociedade contemporânea. Assim, segundo Lane (1984b),
todo e qualquer grupo exerce uma função histórica de manter ou transformar as relações sociais desenvolvidas em decorrência das relações de produção e, sob este aspecto, o grupo, tanto na sua forma de organização como nas suas ações, reproduz ideologia, que, sem um enfoque histórico, não é captada. (p. 81-82)
Neste sentido, tomando como base a concepção histórica e dialética do processo grupal presente na obra de Lane (1980a, 1981b, 1984b, 1989, 1998; Lane & Freitas, 1997), não é suficiente afirmar que o grupo baseia-se apenas em reunir pessoas que compartilham normas e objetivos comuns. Significa compreender o grupo enquanto relações e vínculos entre pessoas com necessidades individuais e/ou interesses coletivos, que se expressam no cotidiano da prática social. Além disso, o grupo é também uma estrutura social, uma realidade total, um conjunto que não pode ser reduzido à soma de seus membros, supondo alguns vínculos entre os indivíduos, ou seja, uma relação de interdependência. À semelhança de qualquer vivência humana, o processo grupal implica relações de poder e de práticas compartilhadas e, ao se realizar, desenvolve a sua identidade (intragrupo e intergrupos). A atividade grupal tem, portanto, a dimensão externa relacionada com a sociedade e/ou outros grupos, quando o grupo deve ser capaz de produzir um efeito real sobre eles para afirmar sua identidade, e a interna, vinculada aos membros do próprio grupo, em direção à realização dos objetivos que levem em consideração as aspirações individuais ou comuns.
Com a proposta de uma concepção histórica e dialética de grupo, Lane traz algumas sugestões para a análise do indivíduo inserido no processo grupal. A primeira delas é o fato de considerar que "o homem com quem estamos lidando é fundamentalmente o homem alienado" (1984b, p. 84). Deste modo, há sempre dois níveis operando: o da vivência subjetiva e a da realidade objetiva. É categórica quando afirma que:
Qualquer análise de um processo grupal que se apóie no materialismo dialético tem de partir,necessariamente [ itálicos nossos] , desses dois níveis de análise. A emergência da consciência histórica, portanto, de uma ação social como práxis transformadora [ itálicos nossos] , significaria o nível das determinações concretas rompendo as representações ideológicas e se fazendo consciência, momento em que a dualidade desapareceria. (1984b, p. 85).
Em seguida sugere que devemos considerar que todo grupo ou agrupamento existe sempre dentro de instituições, que vão desde a família, a fábrica, a universidade até o próprio Estado, sendo fundamental, portanto, a análi se do tipo de inserção do grupo na instituição. Ressalta ainda que a história de vida de cada membro do grupo também tem importância fundamental no desenrolar do processo grupal e que "tomando-se os dois níveis de análise, o da vivência subjetiva e o das determinações concretas do processo grupal, é sempre ancorada no segundo nível que qualquer dialética poderá se desenvolver" (Lane, 1984b, p. 85). Quanto aos papéis sociais, eles aparecem, enquanto interação efetiva no nível das determinações concretas, onde reproduzem a estrutura relacional característica do sistema (relação dominador-dominado).
Embora o trabalho acima comentado seja a referência mais importante na produção da autora, pois sintetiza uma concepção histórica e dialética e os pressupostos teórico-metodológicos sobre o processo grupal e a produção mais significativa sobre o tema tenha se desenvolvido nas décadas de 1980 e 1990, o grupo e as atividades grupais eram foco de estudo e preocupação de Lane desde a década de 1960. No entanto, as reflexões mais diretas sobre grupo são apresentadas no artigo Uma redefinição da Psicologia Social, quando Lane retoma a definição hegemônica de grupo social que se caracteriza como interdependência entre seus membros, existência de um objetivo comum, pela diferenciação de papéis, pela presença ou emergência de uma liderança. Coloca para os psicólogos sociais algumas questões:
a) Como surgiu o "objetivo comum" , qual a necessidade e qual o produto real que ele visa, fazendo com que essas pessoas se inter-relacionem?b) A diferenciação de papéis não estaria reproduzindo relações sociais já definidas no nível represen-tacional ou ideológico?c) A liderança não seria uma forma de reprodução de dominação considerada, ideologicamente, necessária para a preservação da sociedade enquanto tal? (Lane, 1980a, p. 101).
O questionamento, na verdade, já indica o caminho trilhado por Lane na construção de uma teoria dialética de grupos e tem como subsídios as reflexões da autora sobre a dimensão histórica do desenvolvimento humano, colocando no centro de sua atenção os significados socialmente constituídos e que só podem ser captados pela "intersecção da história individual com a história da sociedade a qual o indivíduo pertence" (1980a, p. 96). É nesse sentido que ela defende que caberia à Psicologia Social, portanto, "estudar o indivíduo no conjunto de suas relações sociais, as quais são determinadas pelas relações de produção desenvolvidas historicamente e mediadas por representações ideológicas que visam a manutenção das relações sociais e, conseqüentemente, das relações de produção" (p. 97).
O passo seguinte foi pensar na linguagem enquanto elo fundamental entre o indivíduo e a sociedade, já que "ao mesmo tempo em que ela é um produto social, ela também é uma forte 'determinante' da ação" (Lane, 1980a, p. 69).
Se queremos compreender processos, se queremos conhecimentos que atendam à maior parte de nossa população, aqui e agora, teremos, necessariamente, que partir do estudo do cotidiano: o que é este simples falar, este se relacionar com os outros, este aprender a "ser social" que se acumula e se transforma? E, se partirmos do aqui e agora (do empírico), só chegaremos a entendê-lo se ampliarmos a nossa dimensão espaço-temporal, ou seja, a sociedade, historicamente compreendida.É dentro deste contexto que problemas como: a ideologia presente no que dizemos ser a realidade, a consciência de si e a para-si, isto é, a social, a alienação não só "mental" , mas basicamente a social se tornam questões fundamentais a serem investigadas no cotidiano do homem, ou seja, daqueles que são a força do trabalho produtivo, e como tal, os principais agentes históricos (Lane, 1980b, p.70-71).
O que chama a nossa atenção neste processo, é que a historicidade é recuperada por Lane, mudando qualitativamente o olhar sobre os fenômenos individuais e sociais:
o homem fala, pensa, aprende e ensina, transforma a natureza; o homem é cultura, é história. . . Esta desconsideração da Psicologia em geral, do ser humano como produto histórico-social, é que a torna, se não inócua, uma ciência que reproduziu a ideologia dominante de uma sociedade . . . (Lane, 1984a, p. 12).
Assim, retomando as questões sobre grupo, qual seria o papel das técnicas de dinâmica de grupo? Lane (1980a) afirma que, antes de qualquer coisa, elas visam adequar, ajustar os indivíduos e o grupo às condições existentes e ao fazer isso, impedem o desenvolvimento da autonomia do indivíduo e do grupo.
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